E ele me olhou, com olhos de quem vê pela primeira vez. Pude enxergar de novo o que já há muito não via mais: seus olhos quentes sobre mim, e meu sorriso que dançava pela boca.
Eu tinha sentido falta daquele rosto, dos dentes e do cheiro. Apesar do tempo, ainda me sentia no colegial. Afoguei-me de lembranças do que foi e do que poderia ter sido. E seus olhos distantes pareciam afogar-se comigo.
Foram alguns instantes em que voltei ao deserto de encantos e loucuras que ficaram pra trás. E por que ficaram pra trás? Já nem sabia quando, já nem sabia como... Já não havia pensamento que pudesse se organizar. Não me perguntava o que ele fazia ali, onde eu estava ou o que fora buscar. Meu corpo inteiro parecia concentrado em transbordar tudo aquilo que deixei que fosse. Tudo aquilo que nem sabia sentir mais.
- Oi. – foi só o que disse. Oi. Eu podia esperar qualquer coisa, mas oi? Contudo, logo em seguida, compreendi. Vi seus olhos desviarem-se, senti a sonoridade curta e tímida da pequena palavra e tudo o que ela poderia querer dizer.
Eu sorri.
- Oi. – foi só o que também saiu de minha boca, porém este não. Este foi mais lento, mais lânguido... Como se reproduzisse todo o silêncio de minha mente e o tempo triste que se fora. Fazia tanto tempo... Do que mais eu poderia me lembrar?
- Você ainda morde a boca quando pensa... – encarei-o intrigada. Seus olhos ainda eram tão doces quanto antes.
- É, eu, aah... Eu nem tinha reparado. – soltei a respiração forte e de uma só vez, também não notara que a andara prendendo.
- Haha, eu sei que não. – ele sorriu de lado, como fazia quando sabia que tinha razão. Talvez aquele fosse também seu sorriso de flerte. Não sei exatamente, ele nunca funcionara pra mim. Eu gostava muito mais... – Tão distraída como sempre. – olhei pra baixo e encarei meus pés que se cruzaram rapidamente.
- Novidade... – revirei os olhos. – Então, uuhn... O que anda fazendo por aqui? – ele me olhou com um pouco de espanto, o que não durou muito, pois pareceu lembrar-se de algo.
- Eu, aah, vim te ver. Não é óbvio?
- Rápido demais. – na-ná, ele ainda achava que conseguiria enganar a mim?
- ... Bem demais.
- Que?
- Nada.
- Ora! – cruzei meus braços em relutância. Puf...
- Haha, eu senti mesmo falta desta cara! – e então ele fez de novo, mais uma vez ele poderia me convencer de absolutamente tudo. Era o meu sorriso. Seus olhos viraram como quem está à espera de algo, que aparentemente não veio. Então continuou:
- Minha irmã está vendo uma proposta de emprego aqui, tranquei a faculdade, ‘tava pensando talvez em me mudar...
- Ah, eu aahn... Legal, sua irmã vai gostar daqui. Já não me vejo em outro lugar. Isso tudo parece parte de mim agora...
- Como um dia eu fui.
- Ahn? – suas palavras embaralharam-se em minha mente. Ele simplesmente não poderia ter dito o que achava que ele havia dito, poderia? – Doug, pra que isso agora? Por que só agora?
- Jane, eu não entendo, por que ‘tá falando assim comigo?
- Doug, eu que não ‘to entendendo! Eu fui embora há quase cinco anos! Sabe quantas vezes eu te vi esse tempo todo? Sabe quantas vezes eu vi seu número tocar? Ou quantas vezes eu pensei em voltar? - imaginei muitas vezes essa conversa, mas em nenhuma delas vi esse caminho, não acreditava no que eu mesma estava fazendo. Não, nem pra mim fazia sentido. – Você sabe quantas vezes cogitei abrir mão do meu maior sonho, Doug? Sabe?
- Não, eu não sei. – ele soltou uma respiração forte. – Eu só sei que atravessei mil quilômetros de estrada, deixei minha faculdade trancada, corri como um maluco pela cidade... Tem noção como é difícil encontrar seu número garota? Nem a Alice tinha isso mais!
- É lógico que não, ela quase não fala mais comigo desde que mudou pra Niterói, foi terminar o colegial lá, que seja... Você devia saber...
- Não é essa a questão, Jane! Que me importa a Alice? Que ela se exploda! Aliás, que essa cidade se exploda! Eu vim aqui na esperança de te ver outra vez! De novo...
- E a sua namorada?
- A gente não ‘tá mais junto.
- Por que trancou a faculdade?
- Eu não sei se é isso mesmo que eu quero.
- Então é isso? É esse o resumo? Você me aparece do nada, com sua vida fudida, querendo que eu a conserte mais uma vez?
- Você só pode estar brincando... Onde você aprendeu a falar assim? Eu falei que esses paulistas iam mudar a sua cabeça! Eu não devia...
- É, não devia mesmo! – a esta altura eu quase gritava, os sentidos borbulhavam por mim. – Você não devia muita coisa Doug! – tentava me acalmar, meu rosto fervia, devia estar vermelho. É, era como sempre acontecia... Há tanto tempo que já não acontecia... – Não devia muita coisa, mas bem, - soltei uma risada de escárnio – agora não faz muita diferença mais...
Ele abaixou a voz:
- Não faz? – aquilo parecia doer nele, tanto quanto nunca doeu em mim. Minha dor foi lenta, curtida, mas saboreada pouco a pouco. Não era como a dele, não, não, eu sofri tortura, ele talvez pena de morte. Mas ele não ia morrer mais, não mais.
Foi só um sussurro:
- Não mais... – e então eu vi a distancia, vi se aproximar devagar, com passos de quem não quer atrapalhar, com olhos de quem poderia devorar. Tão intensos quanto os dele; tão iguais na força, tão diferentes na razão... Tão mais meus.
Seus cabelos quase raspados e seu andar distraído eram tão diferentes do homem a minha frente quanto suas atitudes. Ele estivera comigo, a paciência fora dele, o tempo amargo também. Construímos aquelas pontes, elevamos montes, derramamos mar... Com o moreno havia sido diferente. Ele era o amor da sua vida. Fora forte, quase irresistível. Fora meu, mas fora pouco demais. Eram dama e cavalheiro sem assumir a dança. Nunca saímos do salão. Não, não, era mais forte do que poderíamos entender. Éramos jovens demais pra poder arriscar. Ou quem sabe um tanto tolos demais.
Sem querer eu sorri.
Ele acompanhou meu olhar, entendeu logo em seguida. Eu não poderia esconder, ele sempre entenderia sem que eu precisasse dizer. Seus olhos baixaram. Vi sua dor.
- Aham, eu já entendi. Eu... – ele perdeu as palavras. – só não faça na minha frente, ok?
- Ah... Doug... – Já sabia o que dizer, mas de repente ele só assumira seu lugar e falara tão igual ao loiro que quase me confundi. Eu quis fechar os olhos, quis voltar atrás. Quis o perfume de novo e o sorriso ao me ver outra vez. Quis todo o simples de antes. Quis, mais uma vez, ter feito tudo que deixei pra depois.
Mas ele chegara, passara a mão pela minha cintura e me apertara um pouco contra seus braços. Então me olhou nos olhos:
- Quer que eu saia? – foi quando vi. Ali, na minha frente. Era o que os diferenciava. Não eram os cabelos opostos, nem os olhos verdes: mais claro e mais escuro, não eram os ombros largos e fortes de Doug, nem seu bronzeado forte. Não era a pele clara de Tom, nem seu sorriso limpo. Não era a diferença em seus tons de voz, nem a força do abraço.
- Não, você pode ouvir. Foi ótimo te ver outra vez Doug, me liga se precisar de uma guia por algumas horas. Agora eu tenho que ir, tenho uuhn... Qualquer coisa com o meu namorado. – Era aquele brilho e a confiança que punha em mim. Ele sabia muito melhor do que eu mesma do que era capaz.